O homem moderno acorda, sobressaltado, com a música do rádio-despertador. Enfia-se no carro, a caminho do emprego, ouvindo a rádio ou CDs. Na fila de trânsito, com jeito, ainda tem tempo para experimentar o último jogo-vídeo de som sintético que comprou para o filho mas que não resiste ser ele a estrear. No ele...vador ajeita o nóda gravata ao som uma cadência ambiental.
Quando se senta ao computador põe-se a descarregar música. É uma sorte, pensa, porque o iPod ainda tem muitos gigas de armazenamento.
Há hora de almoço vai ao centro comercial de ambiente sonoro funcional, entra numa loja ao som de música tecno, dirige-se para o restaurante com os auscultadores do iPod nos ouvidos para ouvir as novidades descarregadas da internet que não vai ter tempo para ouvir de outra forma e escolhe um restaurante com música atmosférica, porqueé mais giro, confortável, prazenteiro.
De regresso ao emprego ouve “What a wonderful world” de Louis Arsmtrong na estação do metro perante o olhar moribundo dos restantes transeuntes. Quando se senta de novo procura uns vídeos de música no YouTube para partilhar com os amigos no Facebook e descarrega, com sorriso maroto, a discografia inteira de Tom Waits que ainda não tinha disponível no iPhone. Provavelmente nunca os irá ouvir. Mas nunca se sabe. Mais vale prevenir.
A meio da tarde há tempo para uma ida rápida à esplanada. Com música, claro. De regresso a casa, outra vez no tráfego, coloca o volume do sistema sonoro bem alto, para se sobrepor ao ruído dos carros, dos aviões, das pessoas para as quais já não há paciência. Há hora de jantar, finalmente em casa, desaperta a gravata e suspira. Mas o sentimento de solidão irrompe. Não sabe estar em silêncio. Acaba por ligar a TV ou o leitor de CDs. Sempre faz companhia. Necessita de som à volta para confirmar que existe.
O homem moderno sabe que a música está em todo o lado, a toda a hora, no espaço público e privado. Sabe que se tornou omnipresente e ubíqua e que a quantidade se substituiu à qualidade da experiência. Sabe que é necessário reaprender a ouvir. Sabe que na última década a tecnologia potenciou o acesso ilimitado à música, como a capacidade dos indivíduos a criarem e disseminarem. Sabe que o problema não é a sua multiplicação – porque quem conhece mais e tem espírito crítico amplia os seus horizontes – mas sim a relação passiva e indiferenciada que se pode estabelecer com ela.
Ele sabe. Mas não sabe o que fazer.
À noite vai à discoteca. No táxi, de regresso, leva com uma musiquinha em altos berros, ‘para ver se não adormeço, amigo’, justifica-se o taxista. Quando chega à cama nem quer acreditar. Para dormir coloca uma música calma. Finalmente, silêncio, essa coisa rara no mundo urbano do séc XXI. Uma quietude purificadora abate-se sobre o quarto, as pálpebras sucumbem ao cansaço, mas eis que os vizinhos de baixo começam a discutir, o bebé a chorar, e o homem moderno percebe que não existe forma de escapar.
Vitor Belanciano
PÚBLICO 14-7-2010
Quando se senta ao computador põe-se a descarregar música. É uma sorte, pensa, porque o iPod ainda tem muitos gigas de armazenamento.
Há hora de almoço vai ao centro comercial de ambiente sonoro funcional, entra numa loja ao som de música tecno, dirige-se para o restaurante com os auscultadores do iPod nos ouvidos para ouvir as novidades descarregadas da internet que não vai ter tempo para ouvir de outra forma e escolhe um restaurante com música atmosférica, porqueé mais giro, confortável, prazenteiro.
De regresso ao emprego ouve “What a wonderful world” de Louis Arsmtrong na estação do metro perante o olhar moribundo dos restantes transeuntes. Quando se senta de novo procura uns vídeos de música no YouTube para partilhar com os amigos no Facebook e descarrega, com sorriso maroto, a discografia inteira de Tom Waits que ainda não tinha disponível no iPhone. Provavelmente nunca os irá ouvir. Mas nunca se sabe. Mais vale prevenir.
A meio da tarde há tempo para uma ida rápida à esplanada. Com música, claro. De regresso a casa, outra vez no tráfego, coloca o volume do sistema sonoro bem alto, para se sobrepor ao ruído dos carros, dos aviões, das pessoas para as quais já não há paciência. Há hora de jantar, finalmente em casa, desaperta a gravata e suspira. Mas o sentimento de solidão irrompe. Não sabe estar em silêncio. Acaba por ligar a TV ou o leitor de CDs. Sempre faz companhia. Necessita de som à volta para confirmar que existe.
O homem moderno sabe que a música está em todo o lado, a toda a hora, no espaço público e privado. Sabe que se tornou omnipresente e ubíqua e que a quantidade se substituiu à qualidade da experiência. Sabe que é necessário reaprender a ouvir. Sabe que na última década a tecnologia potenciou o acesso ilimitado à música, como a capacidade dos indivíduos a criarem e disseminarem. Sabe que o problema não é a sua multiplicação – porque quem conhece mais e tem espírito crítico amplia os seus horizontes – mas sim a relação passiva e indiferenciada que se pode estabelecer com ela.
Ele sabe. Mas não sabe o que fazer.
À noite vai à discoteca. No táxi, de regresso, leva com uma musiquinha em altos berros, ‘para ver se não adormeço, amigo’, justifica-se o taxista. Quando chega à cama nem quer acreditar. Para dormir coloca uma música calma. Finalmente, silêncio, essa coisa rara no mundo urbano do séc XXI. Uma quietude purificadora abate-se sobre o quarto, as pálpebras sucumbem ao cansaço, mas eis que os vizinhos de baixo começam a discutir, o bebé a chorar, e o homem moderno percebe que não existe forma de escapar.
Vitor Belanciano
PÚBLICO 14-7-2010
8 comentários:
Durante o "horário laboral" relatado, pergunto:e trabalhar?!
???
"a caminho do emprego".."Quando se senta ao computador põe-se a descarregar música".."Quando se senta de novo procura uns vídeos de música no YouTube para partilhar com os amigos no Facebook e descarrega".."A meio da tarde há tempo para uma ida rápida à esplanada".. como o cenário foi apresentado, a minha dúvida é: enquanto está no trabalho, quando é que realmente trabalha!?
Faz tudo isso enquanto labora. Não conheces nenhum exemplo?
Trabalhar a seleccionar musica para descarregar e a procurar vídeos no youtube..só se o trabalho for ao telefone e fala enquanto procura?!
Por exemplo
certo!.."mas não é só nas chamadas classes mais altas que hoje o trabalho é geralmente já mais fingido que realmente feito, também entre as pessoas ditas mais simples esse teatro está bastante divulgado, as pessoas fingem trabalho por toda a parte, simulam actividade, quando, na realidade, apenas passam o tempo a mandriar e não fazem absolutamente nada e, em geral, em vez de se tornarem úteis, causam ainda por cima o maior prejuízo."(Thomas Bernhard) Viva a música!..e o youtube! :)
Maiiii nada!
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